segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

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Deficientes de guerra. A realidade que alguns preferiam esconder
Foram voluntários à força. Agora, mais do que nunca, precisam que lhes dediquem tempo. Nem que seja para os ouvir resmungar. Mas de preferência para os fazer sorrir

Tudo normal. De cima a baixo. Cabelos brancos, olhos azul do céu, sorriso maroto e andar desembaraçado. Aparentemente. A perna direita é uma prótese. Das melhores que se fazem no mundo, "quer ver?" Esta é uma coisa que fica, como se não vendo, não tocando com as mãos, fosse impossível acreditar que é real. "Mandaram-me para lá puto e fiquei assim, agora têm de me pagar o melhor, não é?"
O melhor, no caso de Carlos Noivo, é feito em Hamburgo e "custa o preço de um Audi". Próteses a que só alguns têm direito, muito poucos, dependendo do grau de deficiência atribuído pela Junta Militar, mais do que da barbárie da sua história. No início era a própria Alemanha que pagava para receber estes amputados e aperfeiçoar uma indústria na qual é mestre, fruto de tantas guerras. Hoje é o Ministério da Defesa que paga a conta.
A guerra terminou há mais de 40 anos, mas para estes soldados a vida é uma eterna batalha. E um homem não chora, pelo menos os de antigamente. Fazem voz grossa, dizem que matam e esfolam, mas são uns corações de manteiga. Desde que não se pressione o gatilho. E o gatilho sabe Deus o que poderá ser. Há os que têm golpes visíveis, escondidos debaixo da roupa ou por trás dos óculos. E os stressados pós-traumáticos, sem uma cicatriz na pele mas desfeitos por dentro. Num e noutro caso quase sempre preferem sofrer em silêncio porque falar é pôr o dedo na ferida e a ferida precisa de sarar, tem de sarar.
São 13 mil só na Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA). E não estão lá todos. Estima-se que tenham ficado 30 mil feridos em combate. E mais 40 a 50 mil homens afectados por stresse de guerra. Tantas décadas depois continuam a chegar à instituição processos e pedidos de ajuda para qualificar combatentes da guerra colonial como deficientes das Forças Armadas. Gente à procura de uma pensão, de uma vida mais digna, se não para si, pelo menos para os seus. O Estado atrasa-se na qualificação e as indemnizações materiais teimam em não chegar. Há casos em que as compensações são atribuídas a título póstumo.
A geração que fechou o Império tem hoje uma média de 67 anos. Já não são miúdos e carregam, além da limitação física, o peso da idade. Com os anos, há combates que o corpo já não consegue travar. O desporto, que era um dos pontos de união, foi substituído pela sesta. Hoje, "muitos ficam em casa", conta o senhor Janeiro, responsável pela delegação de Lisboa. Esta é agora a maior dificuldade: "Fazê-los sair à rua é uma luta." As mulheres, muitas delas ex-enfermeiras, são as suas cuidadoras. Mas estão também a precisar que tomem conta delas. Casas fartas: eles delas, elas deles. Vale-lhes o sentido de humor. Negro, é certo, para exorcizar raivas antigas. E contemporâneas também.
Não é para menos, a realidade é desconcertante: um grupo de ex-combatentes deficientes das Forças Armadas - cegos, paraplégicos, tetraplégicos, amputados - organizou um dia de festa, com piquenique e passeata pela marginal. Enquanto, cá de cima, alguns contemplavam o mar, perto da Parede, concelho de Cascais, passou de carro um presidente de câmara. Pouco depois chegou alguém a pedir para retirar o grupo do local. Porquê? "O senhor presidente diz que dá mau aspecto para o turismo."
Estes militares também preferiam ter o aspecto de pessoas absolutamente normais. "Eu queria mostrar os meus olhos. Não queria andar de óculos escuros", lamentava-se dois dias depois desta conversa o presidente nacional da ADFA, José Arruda. Além de cego dos dois olhos, ficou sem um braço num acidente com uma granada. A última coisa que se lembra de ter visto com olhos foi "uma carta cor-de-rosa" que levava consigo para onde quer que fosse, escrita pela sua namorada, hoje mulher e mãe dos seus dois filhos.
Arruda vai interrompendo a conversa para dizer que não quer falar de si, prefere falar da instituição. "Parecemos todos mal humorados", diz. "Empurraram-nos para a guerra, agora precisamos de atenção." As necessidades destes ex-soldados não são iguais, mas há uma comum a todos: precisam de não ser esquecidos.
O presidente da ADFA (que tem 12 delegações, incluindo Madeira e Açores), sabe isso melhor que ninguém e quer estar em todo o lado, fazer lóbi. "É importante porque quem decide é o poder." E é esta a via sacra dos veteranos, fazer- -se lembrar. Dentro de meia hora estará com o ex-Presidente da República general Ramalho Eanes e entretanto já se certificou de que uma coroa de flores em nome da associação chegará à viúva do almirante Vítor Crespo, que faleceu hoje.



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